1976: O INÍCIO DE TUDO - UMA VITÓRIA SURPREENDENTE NAS ELEIÇÕES

14/10/2013 11:09

        Ninguém acreditava que pudéssemos ganhar as eleições para Prefeito de Pelotas, em 1976. Vivíamos ainda sob ditadura militar e o MDB ainda engatinhava, tentando fazer oposição, mas em condições totalmente adversas. Eu havia passado 18 anos fora de Pelotas e quando disse ao Simon, que era o Presidente do Partido no Estado, que iria concorrer a vice-prefeito, embora houvesse retornado a minha terra há menos de um ano,  ele me chamou de louco. Um mês depois, voltei a Porto Alegre e comuniquei minha disposição de concorrer a Prefeito, já que o meu companheiro desistira de concorrer. Foi o suficiente para que Pedro Simon pedisse uma corda a Alceu Collares, que estava reunido com ele, para me amarrar à cadeira onde me sentara.

         Simon nunca esqueceu o episódio, nem eu. A verdade é que começou a campanha, com o MDB tendo dois candidatos em sublegendas à Prefeitura de Pelotas, que concorreriam contra dois candidatos da Arena.

         Todas as pesquisas nos colocavam em quarto lugar, pois afinal não haveria um quinto candidato, mas tocamos a campanha com garra, para suprir pelo trabalho as condições que as pesquisas teimavam em dizer que não tínhamos - eu e o Arion Louzada, candidato a vice-prefeito, enquanto na outra sublegenda o PMDB tinha os nomes de Enilton Grill e Sérgio Chim dos Santos.

         A situação só começou a mudar quando foram divulgados os currículos dos candidatos. Naquela época, em plena vigência da Lei  Falcão, os candidatos não podiam falar pelo rádio e televisão, limitando-se a reproduzir uma fotografia e o currículo. Meu currículo ajudou e o Arion fez um aproveitamento muito bom do espaço que tínhamos. A trinta dias das eleições, tivemos a informação, por gente da Arena, que subíamos nas pesquisas feitas por eles. Não tínhamos dinheiro para pagar pesquisas; e, dos cinqüenta candidatos a Vereador pelo MDB, só tínhamos apoio de cinco, enquanto quarenta e cinco apoiavam a outra chapa.

         Vieram as eleições e com elas a apuração. Quando começaram a abrir as urnas do centro e da colônia, nossos adversários dispararam. Afinal, durante muitos anos Pelotas tinha sido domínio absoluto das forças políticas que agora constituíam a Arena. Tinham a seu lado os governos da União, do Estado, e a própria Prefeitura, além de uma estrutura política invejável, com todo o apoio da imprensa local.

         Chegamos a estar perdendo por mais de seis mil votos e foi muito difícil manter a nossa gente nos locais de apuração,  fiscalizando a contagem dos votos. Quando já ninguém mais acreditava que pudéssemos ganhar, começaram a ser abertas as urnas dos bairros. Em torno das três horas da tarde, o repórter de uma das emissoras de rádio de Porto Alegre me entrevistou pelo telefone e perguntou se eu ainda tinha alguma esperança, uma vez que àquela hora a vantagem da Arena ainda era de mais de quatro mil votos. Eu havia acabado de fazer um cálculo e constatara que estávamos tirando a diferença de cerca de oitenta votos por urna, o que levava à constatação que poderíamos ganhar com pequena vantagem. Disse isso e ele riu de mim.

         À tardinha, final de apuração, passamos à frente. Ganhamos. Fui arrancado do chão por uma multidão que ria, gritava, cantava. Fui carregado nos ombros pelas ruas, desde o ginásio do Cruzeiro até a Praça Coronel Pedro Osório. De todos os lados vinham pessoas a pé, de bicicleta, de carroça, de automóvel. Em poucos minutos a frente da Prefeitura ficara coalhada de gente, creio que mais de cinco mil pessoas, vindas de todos os cantos. Queriam que falássemos. Não havia qualquer aparelhagem de som. Explodiam foguetes e alegria por toda parte. Mas o povo queria que falássemos. E falamos, ou melhor, gritamos com toda a força a nossa alegria e a alegria  de todos. Foi um dia memorável.

UMA ADMINISTRAÇÃO DEMOCRÁTICA E POPULAR

         Vieram a diplomação e a posse.

         Passamos a recrutar amigos e companheiros para as chefias da nova administração. Gente da terra e de fora, pois precisávamos dos melhores. O desafio era enorme. Tínhamos descendentes de portugueses, espanhóis, italianos, alemães e, pela primeira vez na história de Pelotas tínhamos no secretariado dois descendentes de africanos. Houve quem torcesse a cara, afinal estávamos em Pelotas, onde, até alguns anos antes,  negros não podiam entrar nos cinemas do centro.

         Lembro-me de um episódio que me marcou bastante. Nas proximidades do Café Aquário, um cidadão, em roda de amigos disse, suficientemente alto para que eu ouvisse, por certo: “O que é que o Irajá quer com essa negrada na Prefeitura? Também aquele cabelo dele não engana ninguém.” Depois vim a saber que se tratava do administrador de uma multinacional instalada em Pelotas. Não falei nada; a resposta teria que ser dada em trabalho.

         Abrimos a Prefeitura para o povo. A sede do Executivo havia sido reformada e ostentava passadeiras vermelhas nas escadarias de mármore e tapetes no salão nobre. Mas o povo não ia lá. Passei a receber a população em audiências públicas todas as quartas-feiras. Durante seis a oito horas ouvia as reclamações, os pedidos, as sugestões e tentava encaminhar soluções imediatamente. Os resultados foram excelentes, pois os olhos e ouvidos dos cidadãos passaram a me auxiliar diretamente no acompanhamento do desempenho de uma máquina administrativa que eu não conhecia.

         O povo sentiu-se prestigiado.

UMA SITUAÇÃO CAÓTICA E DESAFIADORA

         Sob os aspectos urbano e social, Pelotas estava parada. Quando o MDB chegou à Prefeitura, a expectativa era de que se conseguisse sacudir a cidade, para tirá-la do imobilismo. 

         Urgia uma reforma urbana, como elemento fundamental para o equacionamento dos problemas sociais e o reordenamento da vida de nossa cidade. A Divinéia, a Vila dos Agachados e a Bom Jesus, eram testemunhas de que isso era urgente, já que havia uma demanda por habitações populares que ia a 14.000 unidades.

         As mulheres trabalhavam nas fábricas de conservas e nos frigoríficos, mas o número de crianças atendidas pelas creches disponíveis não chegava a 200. Havia um Centro de Saúde estadual e um Pronto Socorro municipal, extremamente deficientes, enquanto nos bairros ou no interior não havia nenhum posto de saúde, um ambulatório, nada. A Estação Rodoviária apresentava condições inferiores às de um paradouro de beira de estrada. O sistema rodoviário urbano era radial e para ir a qualquer bairro era indispensável passar pelo centro da  cidade. Havia enormes vazios urbanos bem perto do centro.

         A pavimentação com pedras irregulares e sem base consolidada dava às ruas uma imagem de paisagem lunar. Havia sido tentada a pavimentação de  algumas avenidas com blocos hexagonais que não tinha  dado certo. A cidade não tinha a mínima estrutura  de planejamento.

         Raras eram as propriedade rurais servidas de energia elétrica e a ausência de pontes dificultava a chegada dos produtos primários perecíveis até os locais de industrialização ou comércio. A Estação de Tratamento de Água do Santa Bárbara precisava ter sua capacidade duplicada com urgência. O lixo só era recolhido no centro ou em áreas próximas a ele. Proliferavam por todos os bairros as “bicas”, torneiras públicas de uso comunitário, junto às quais se formavam filas intermináveis de gente com baldes e tonéis.

         Ônibus, caminhões e automóveis transitavam pela rua Andrade Neves, de calçadas estreitas, com gente se acotovelando para ter acesso ao comércio ali instalado. O Teatro 7 de Abril estava em péssimas condições, a chácara da Baronesa era um prédio deteriorado no meio de um matagal; e os casarões  que retratavam a fase áurea da cidade e ainda não tinham sido demolidos,  aguardavam data para desaparecer, seguindo o caminho dos belíssimos postes de iluminação pública em metal trabalhado, que haviam adornado as ruas e as praças e tinham sido vendidos como ferro velho.

         Não existia nenhum dispositivo legal que protegesse o ambiente natural  ou o patrimônio cultural - e a orquestra sinfônica era apenas uma lembrança do passado.

         Os funcionários da Prefeitura eram os únicos trabalhadores sem direito a 13º salário; as professoras municipais que acumulavam dois cargos só recebiam  50% dos vencimentos do segundo: não havia uma política de pessoal.

         Era preciso reavivar as brasas do passado e sobre ele construir o futuro. Foi o que fizemos.

         Começamos por dotar a Prefeitura de invejável estrutura técnica, que nos iria permitir a modernização dos instrumentos de gestão e o acesso a recursos nacionais e internacionais, capazes de ampliar as disponibilidades locais, sem onerar a comunidade.

Éramos uma Prefeitura de oposição num quadro de ditadura militar, em processo de abertura lenta e gradual. Seria necessária muita competência. Até mesmo porque recolhemos nos quadros municipais técnicos e trabalhadores que tinham sido vítimas de perseguição política aqui e em outros lugares e, por ficarem marcados, não estavam conseguindo emprego.

         O povo trabalhador estava anestesiado pelo período de restrição às liberdades. Era preciso organizar a sociedade para que tivesse voz. Fomentamos a criação das associações de bairro e finalmente a união delas, através da UPACAB.  Aprendemos muito com esse entrosamento e não posso esquecer de uma das grandes lições que recebi.

         Estávamos planejando as melhorias no bairro Areal, com a implantação de redes de água, esgoto, iluminação pública, pavimentação e equipamentos urbanos, quando fui convidado para uma reunião na Vila Bom Jesus. A reivindicação básica dos moradores era de que não se fizesse nenhuma obra naquela vila. Fiquei atônito. Era a primeira vez que me reivindicavam isso. Ocorre que alí quase todos os moradores eram posseiros, permanentemente pressionados pelo proprietário dos lotes, o IAPAS, que queria a desocupação. Se houvesse a urbanização da área como queríamos fazer, eles seriam irremediavelmente expulsos dali e não se beneficiariam com nada.

         Atendi o pedido dos moradores: a área foi excluída dos planos; e comecei a trabalhar para que a Prefeitura se tornasse proprietária dela, transformando os ocupantes em promitentes-compradores dos seus lotes.. Consegui. Foi uma grande vitória. Ficou a lição.

 

 

Texto retirado do Livro Uma Revolução Urbana em Pelotas disponível na livraria Mundial.

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